Você sabia que Salvador possui o maior acervo particular de figurino e elementos cênicos, para teatro e audiovisual, do Norte e Nordeste do Brasil? São mais de 12 mil peças, entre roupas, perucas, adereços, sapatos, óculos e outros acessórios, todos cuidadosamente preservados e armazenados em um espaço no Forte do Barbalho chamado Acervo Boca de Cena.
Esta história começa quando o figurinista, aderecista, maquiador, cenógrafo e ator pernambucano Maurício Martins ficava intrigado, sempre que ia ao teatro, com o destino que os figurinos que via em cena teriam. Acabou descobrindo que não tinham um endereço fixo nem quem cuidasse deles. Muitas vezes, ficavam com o diretor e o próprio elenco encostados em um canto qualquer da casa.
“Quando comecei a frequentar teatro em Salvador, lá nos anos 1980, sempre me perguntava onde ficavam os figurinos de tal espetáculo. E ninguém sabia. Às vezes o material ficava na casa do diretor ou dos atores, mas não existia um local específico que armazenasse esses figurinos para poderem ser reutilizados, por exemplo”, conta Mauricio.
Apaixonado por teatro, Mauricio decidiu então virar figurinista e cuidar da indumentária dos espetáculos de Salvador, e não somente daqueles em que assinava o figurino.
“A partir daí, comecei a garimpar em brechós e juntar material num apartamento que morava no corredor da Vitória. Em 1995, Celso Junior (ator e diretor) me convidou para assinar o figurino do infantil Pluft o Fantasminha, com direção dele. Eu disse que faria desde que ele devolvesse o figurino. Foi o meu primeiro figurino de teatro armazenado”, lembra Mauricio.
Mouraria e Barris
Depois disso, Martins passou a ficar conhecido no meio teatral e os artistas começaram a lhe doar figurinos e outros elementos cênicos para que guardasse e cuidasse.
Com o tempo, o espaço na Vitória começou a ficar pequeno, então a arquiteta Naia Alban ofereceu a casa dela, na Mouraria, para que Mauricio pudesse guardar todo o material que tinha. Ele ficou lá por sete anos, começou a se profissionalizar e deu nome à coleção de vestimentas: Acervo Boca de Cena.
Da Mouraria, levou tudo para um apartamento nos Barris, local em que mora até hoje. Em 2001, o diretor de teatro paulista José Possi Neto veio a Salvador para dirigir a peça Ensina-me a Viver, com Nilda Spencer, e precisou garimpar material para montar o espetáculo. Até então, Mauricio só utilizava os figurinos para trabalhos pessoais.
“Ele esteve na minha casa e ficou encantado com a variedade e qualidade das peças, então disse que eu precisava abrir aquilo para a classe artística, que o acervo precisava ser visto porque era muito bom. Este foi o start para eu decidir abrir e começar a alugar as peças”, relata Martins.
O tempo passou e Mauricio foi trabalhar como figurinista no longa baiano O Jardim das Folhas Sagradas, de Pola Ribeiro, em 2005, rodado no Forte do Barbalho. Depois de ficar por meses no local e receber um convite para manter o acervo em um dos muitos espaços do forte, decidiu levar o Boca de Cena para lá definitivamente. Isto era setembro de 2007.
“É um espaço cedido pela Secretaria de Cultura (estadual). Somos permissionários, usamos o espaço gratuitamente e, em contrapartida, ofereço, durante o ano, cinco oficinas de figurino”, explica Mauricio.
Locação e manutenção
E como não recebe nenhum tipo de recurso financeiro para ajudar a sustentar o espaço – que também tem a função de minimizar o custo das produções culturais –, o acervo se mantém basicamente dos aluguéis das milhares de peças utilizadas em produções comerciais, de cinema, de espetáculos teatrais e festas particulares.
“Hoje, o único incentivo financeiro que o acervo tem é o de suas próprias locações. E o dinheiro arrecadado é utilizado para a manutenção das peças”, revela Martins.
De segunda a sexta-feira, das dez da manhã às cinco da tarde, Mauricio e o ator Widoto Áquila, seu sócio, podem ser encontrados no Boca de Cena cuidando, de forma ‘artesanal’, do acervo, já que eles não têm funcionários. Eles limpam, colocam as roupas no sol para quarar e movimentam sempre as peças para que não acumulem umidade, tampouco mofo.
Com o tempo e o reconhecimento do trabalho, o Boca de Cena passou a atender também produções de todo o Brasil. E nem precisa dizer que quase todo projeto cultural realizado na capital baiana passa necessariamente pelo acervo instalado no Forte do Barbalho.
Mas, mesmo orgulhoso do trabalho realizado nestes anos todos, Mauricio tem novos planos para o acervo. “Meu sonho seria ter a Fonte Nova para armazenar tudo. Toda a arena (risos). Na verdade, o ideal seria ter um local adequado de armazenamento, com ar condicionado, por exemplo, mas agradeço a Deus por estar neste espaço e ter a possibilidade de mostrar à comunidade figurinos originais de espetáculos que estiveram em cartaz. Para mim, isto é extremamente gratificante”, confidencia o aderecista.
E acrescenta: “Meu sonho é criar na cidade o Museu do Teatro, onde pudesse ficar perpetuada a história do teatro baiano. Também tenho um projeto de fazer um documentário sobre o acervo. Contar a importância dele para o cenário baiano e nacional”, finaliza Mauricio.
Para conhecer um pouco do trabalho da dupla, é só visitar a exposição Trajes de Cena do Teatro Baiano, em cartaz na Galeria da Cidade, no Teatro Gregório de Mattos (praça Castro Alves), até o próximo dia 26, de terça a sábado, das 13h às 18h. A mostra é uma homenagem ao figurinista Miguel Carvalho, que nos deixou em 2022, e tem figurinos de 23 espetáculos de teatro.
O Acervo Boca de Cena – esta verdadeira joia soteropolitana – continua recebendo material de quem estiver interessado em doar. O endereço é rua Marechal Gabriel Botafogo, s/n, Forte do Barbalho.
Além de fundamental e necessário também para a construção da história do audiovisual baiano, o trabalho de Mauricio e Widoto é de extrema relevância para as artes cênicas locais e, por isso mesmo, o teatro baiano agradece e os aplaude de pé.